sábado, 10 de outubro de 2009

Honduras, Venezuela, Brasil – Sobre quem chamamos de golpistas



A situação em Honduras parece que se encaminha para uma solução. Lentamente, Roberto Michelleti – o líder do golpe que destituiu da presidência e exilou Manuel Zelaya – vai cedendo em suas principais estratégias de manutenção do poder: revogou o estado de sítio e se propôs a negociar com o presidente deposto que, até agora, encontra-se instalado na Embaixada do Brasil em Tegucigalpa.
Provavelmente, o retorno de Zelaya ao poder ocorrerá repleto de condicionantes impostos tanto pela elite política e econômica hondurenha como pelas forças internacionais, seja da parte do Brasil ou mesmo da Organização dos Estados Americanos (OEA). E, grau a grau, é possível que se retorne ao mínimo de normalidade institucional possível a um país com as dificuldades de Honduras.
Mas, por qual motivo um golpe de estado que derrubou um presidente constitucionalmente eleito de um país absolutamente periférico como Honduras, tão pouco importante para a realidade de nossas vidas, de nosso cotidiano, tem merecido tamanha atenção, tanto de nosso governo como de nossa imprensa? Por qual motivo devemos observá-lo com atenção se, na prática, muito pouco ou quase nada de seu desdobramento alterará nossa realidade?
Responder a essas questões não é tarefa fácil, evidentemente. Mas pensar sobre elas é fundamental. Em primeiro lugar, o caso de Honduras por mais pontual que seja, conseguiu colocar a diplomacia brasileira numa encruzilhada: se apóia Zelaya (como tem feito), abraça um conflito importante em nível internacional se indispondo com alguns setores na política interna do Brasil; se reconhece o governo golpista (o que não aceitou fazer em nenhum momento), aceita a idéia de que governos constitucionalmente eleitos podem ser extintos por meio de levantes militares. Em segundo lugar, o caso de Honduras demonstrou o nível de receio da imprensa brasileira acerca de Hugo Chávez, presidente da Venezuela, e seu propalado bolivarianismo. Há muito tempo que a mídia em geral vem apontando para o risco de um golpe bolivariano nos países latino-americanos, que viriam desmontar a democracia a partir de suas próprias estratégias democráticas (por exemplo, o presidente que faz plebiscito para aprovar um número de reeleições indefinido, visando à construção de uma forma de se perpetuar no poder, legitimado, no entanto, pelo constante apoio popular). Logo, portanto, assim que Zelaya foi deposto – e levado de pijamas para fora do país, uma vez que fora surpreendido pelos golpistas enquanto dormia – a imprensa brasileira passou a tratá-lo como amigo de Chávez e, conseqüentemente, um natural inimigo.
Curiosamente, portanto, aqueles que consideram Chávez um golpista (embora sempre eleito e reeleito), quando analisam o golpe de Honduras acreditam, realmente, que o governo golpista que se instalou no poder pós-derrubada de Zelaya é um pleno defensor da democracia e da Constituição. É por isso que na tevê, na internet e nos jornais, sobretudo, o governo golpista de Honduras é chamado de “governo interino” ou “governo de facto” e não de “governo golpista”, que é o que ele é pois, num golpe de estado, tirou do poder o presidente constitucionalmente eleito sem nenhum tipo de julgamento.
A nós essa situação interessa por vários motivos. Em primeiro lugar por que nosso governo está trabalhando diretamente na situação e isso implica um posicionamento da política externa brasileira que tende a situar o Brasil dentre as principais forças mediadoras de conflitos políticos do mundo – o que, no limite, passa a exigir maior responsabilidade do país no cenário geopolítico mundial. Em segundo lugar, por que o caso hondurenho reflete um posicionamento de nossa imprensa e de determinados setores de nossa sociedade em relação ao comportamento de Hugo Chávez e da Venezuela, mas que se estende a Evo Morales na Bolívia ou a Rafael Corrêa no Equador, e que se caracteriza pela recusa em aceitar um projeto político e econômico diferente daquele desenhado pelos Estados Unidos. Se esse projeto diferente é bom ou ruim, se serve ao interesse brasileiro ou não, é outra história. É preciso que se analise. Mas é fato, porém, que o medo de determinados grupos políticos e econômicos, e da imprensa, em relação a Chávez e companhia é fruto de preconceito puro e simples, e é isso que se percebe em relação ao tratamento dispensado a Honduras atualmente.
Os críticos parecem não perceber (ou fingem que não percebem) que a postura atual do Brasil, em relação a Honduras, é muito significativa, sobretudo, por que rompe com o predomínio do pensamento bolivariano (muito útil como enfrentamento, mas muito pouco efetivo quando se torna necessária a solução para um impasse), mas também por negar a tradição norte-americana de solução de conflitos em pequenas repúblicas latino-americanas, criando um caminho alternativo em que o Brasil tende a ser protagonista.
Por fim, cabe pensarmos em quanto a América Latina é vulnerável a esse tipo de solução golpista... É muito comum que discutamos, no caso brasileiro, o Golpe de 1964 e seus desdobramentos. São as nossas feridas. Mas um pouco menos comum é lembrarmos que nossas feridas também são a de muitos outros latino-americanos. Não se pode esquecer que em fins da década de 1970, todos os países do Cone-Sul haviam se transformado em ditaduras golpistas. O caso de Honduras, portanto, mesmo ocorrendo em outro contexto e outra época, não pode ser observado como elemento ímpar. A mesma imprensa nossa que trata o governo golpista de Honduras como “governo de facto” (uma forma de atenuar seu golpismo) foi aquela que saudou o Golpe de 1964 em suas páginas, em editoriais emocionados (vide jornais “O Globo”; “O Estado de São Paulo” e “Folha de São Paulo”).
Por fim, como forma de reflexão, há nessa página o link para o documentário “A revolução não será televisionada”. Produzido por documentarista inglês, o filme mostra como um golpe ocorre por dentro, uma vez que por sorte, ele estava com sua câmera dentro do Palácio Miraflores, sede do governo venezuelano, no golpe sofrido por Chávez (golpe, aliás, comemorado à época por setores de nossa imprensa e que acabou derrotado por um contra-golpe chavizta, que o documentário também apresenta). É um filme essencial, tanto pelo que nos mostra a respeito de Chávez e da Venezuela, como por evidenciar que o modus operandi dos golpistas tende a certa regularidade na América Latina, seja no passado, seja no presente.Para quem quiser maiores informações e reflexões sobre o caso hondurenho, vale conferir em www.viomundo.com.br

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